segunda-feira, 18 de maio de 2009

Ainda sem nome - Parte II

“Em caso de emergência: Puxe as duas alavancas”
...Nada era mais presente em sua vida do que aquela odiosa sensação de sempre ter que abrir portas, de construir chaves que cada vez mais se acumulavam, cada vez mais o sufocavam. Era um símbolo da sua vida haver um mecanismo para chegar ao céu. Todas as suas relações eram perpassadas por isso, nem as mulheres tinham mais tanto encanto. Perguntava-se se tudo merecia uma chave, sendo essa chave a quantidade que fazia com que as coisas fossem trocadas. Será que cada indivíduo (o tão falado!) deve (!) se sentir tão separado do outro? Tudo tinha que ser tão mecânico?
Perguntava-se se haveria outro mecanismo quando arrebentasse o primeiro, foi mais além e se perguntou: Será que os meus próprios olhos só vêem portas? E cansou! Algumas etapas lógicas à frente demonstraram que a tentativa de se emancipar dessa percepção em chave era uma mecanização da emancipação, em bom português, uma nova chave.
Nada o angustiava mais do que esses ciclos onde o desenhista desenha sabendo que o desenho não agradará. Uma tentação irresistível de registrar uma paisagem de cartão-postal. Era tudo ridículo, nada avançava, os homens de prática o haviam ensinado o método para acusar o ideológico, e a angústia nascia da sua incapacidade de ser tão frio e podre a ponto de não aplicar o método em si mesmo, de se autocriticar. E além do mais, a própria natureza desses questionamentos eram pequeno-burgueses, mesquinhos, existenciais. Não vomitava, pois via naquele momento que o vômito era sagrado e imaginou que ele se alojava em alguma parte independente do seu corpo, aquilo não era algo que retornava ao mundo, subproduto da chacina alimentar cotidiana, mas era a prova, era a imagem, era a materialização da negatividade diária, sendo assim um primeiro passo para uma ruptura profunda. Estava tão pouco sistemático e tão embriagado sem que o tenha ingerido álcool que chegou a pensar que os produtores e reprodutores da idéia de uma organicidade do vômito eram cientistas ideológicos, macaqueando uma mentira que passou a ser verdade. Logo viu que o seu próprio raciocínio era ultra-ideológico, dogmático. Pensou que seu nome era Bruno, chegou a falar em um tom moderado: “São Bruno”*. (*Bruno Bauer)
Enojou-se, engoliu a seco, mordeu o próprio braço, mas não deixou de ter um prazer estético por essa deificação do vômito.
Tocou na janela, nos grandes cobogós de aço e vidro. Uma delas estava aberta, reteve o olhar por um bom tempo no contraste entre o céu aberto e o céu fechado. Pensava, ao focar a metade direita, nas irmãs da sua avó materna. Diziam que quando reconheciam os tais netos da sua irmã mais nova, o faziam tendo como base a altura, o resto se desfazia em nuvens, nem contornos haviam. Haviam manchas, uma hegemônica e estática ao redor de algumas heterocrônicas e heteroformes, as vezes uma pequena nuvem branca se abria um pouco abaixo do centro da mancha morena, e os olhos não existiam, se perdiam na pele marcada e sofrida que os rodeia. Talvez aquelas imagens fossem como elas queriam ser. Se odiavam e não paravam de beliscar a sua própria pele amarrotada por uma ver a si mesma na outra reciprocamente.
Preferia que lutassem com martelos.
Esboçou um sorriso ao perceber que tinha a impressão de ver através de outros olhos, mais especificamente por ver através de olhos gastos que o intrigaram por tanto tempo simplesmente com a sobreposição cotidiana de uma camada de vidro sobre uma camada de céu. Apertou os dentes, sério, por ser ele mesmo esse velho doente. Um inativo.
Soprou a parte esquerda, nada viu, mas supunha que o ar quente dos seus pulmões tivesse se misturado com o mormaço. Soprou a parte direita e viu seu ar tomar forma. Se assombrou, pensou que tudo o que era produzido pelo ser humano era profano, chegou a ver um fantasma-mercadoria estabelecendo propriedades quantitativas sobre as coisas que fazia deslizar a aba da sua saia, essa idéia chegou a se materializar quando mais uma vez soprou a parte direita, a parte-vidro, e viu duas manchas de ar com diferentes tamanhos. Logo estabeleceu uma relação quantitativa entre estas duas manchas de ar e outras manchas do caminho – óleo, água, álcool – tudo passou a ser ora relativo, ora equivalente. Percebeu que a sua percepção estética era completamente enquadrada, tal consciência da sua própria negatividade o fazia um artista: transformava quadrados em esferas, mas não as fazia circular, encaixotava-as onde guardava as suas medíocres vitórias especulativas.
Não conseguia lembrar dos quatro ou cinco minutos que preenchiam o espaço entre dois momentos que obrigavam a memória a registrá-los. Achava isso inconcebível. Sem essa linha, perdida no ar, todas as coisas perdiam a unicidade, lembrava de duas pessoas que falavam alto sobre as suas misérias, mas não lembrava dos quatro degraus vencidos por aquele corpo pesado que marcava o ar de colônia, não recordava da troca de olhares entre este e o cobrador, muito menos as provocações e conversas pontuadas daqueles dois que todos os dias se encontravam na volta pra casa daquela trabalhadora que tinha nos dedos o cheiro de alho do almoço que comeu afastada daquele espetáculo horrendo de sorrisos brancos.
Esses momentos, como necessários, se materializavam na memória como hipóteses, suposições. Não conseguia parar de imaginar o encontro entre a mulher de corpo pesado que exalava colônia e alho e um conhecido seu que jogava palavras-cruzadas, que da sua parte não deixava de pensar se o seu sonho de estar pescando era pura imaginação ou o reflexo dos movimentos da sua cabeça que mais parecia uma vara lançada e puxada, cochilando e despertando. Estranho que o observador lhe inculcasse até os sonhos. Será que, de alguma forma, aquele homem se sentia incomodado com esse arrombamento, e não licença, do seu inconsciente?
Parou por um momento e teve medo de se tornar paranóico, ele era um filho dessa época confusa que foi arbitrariamente taxada de insolúvel, como se vivêssemos num caos cada vez mais confortável, num grande hotel a beira de um abismo*. Toda a sua vida era uma grande abstração. Se desfez desses pensamentos tolos e deixou de ver o outro como tão distante, viu que aquelas duas mentes podiam comungar os seus corpos e divagações. Nada o deixava mais feliz do que essa revira-volta heróica do seu raciocínio. Chegou ao ponto de apertar forte as próprias mãos, mas se entristeceu com aquela solidão, embora tenha sentido, por um momento, em um das mãos, o calor daquele que havia pouco tempo atrás era o outro, e que já não o era mais. Fechou os olhos, ficou alguns segundos sentindo a sua cabeça tremer com o balançar do ônibus que se intensificava quando chegado aos vidros, sentiu o vento e sorriu. (*Lukács)

Nenhum comentário:

Postar um comentário