segunda-feira, 18 de maio de 2009

Ainda sem nome - Parte III

Continuou, imaginou as pernas daquele que pescava palavras em sua mente e as reproduzia mecanicamente no papel. Chegou a imitar o movimento que este homem fez ao oferecer o lugar a sua companheira colônia e alho: estava sentado ao lado do corredor quando a viu, colocou o seu pequeno livro de palavras-cruzadas no colo, afastou a sua perna direita para o canto direito do ônibus e fez dela um apoio que fez com que todo o seu corpo acompanhasse o movimento; quando finalmente mudou de lugar e se sentiu confortável, viu que o corpo da sua companheira era grane demais, retraiu ainda mais as pernas para a direita, os seus joelhos se tocaram, as coxas finas produziam um espaço onde se via a cor da cadeira coletiva, seu corpo e sua alma se encontravam apertados, não se sentia a vontade. O que poderia explicar essa repentina mudança de humor: de uma tranqüilidade serena para uma agonia defensiva, como um gato arrepiado no canto de uma parede? Seria algo construído no passado da relação entre esses dois sujeitos ou apenas uma rejeição mecânica de uma aproximação física e intelectual? Se sentiu ainda mais íntimo do homem das pernas finas, chegou a ver nele as suas sobrancelhas, os seus cílios, as suas pálpebras sofridas. Sabia que gostava dos muitos, gostava de suor e de perceber os seus olhos perdidos e também empolgados em não ver na multidão apenas o mais do mesmo. Mas sabia também que tinha medo, não de sofrer, o que o inspirava, mas um medo puro, uma decepção sem que ninguém precisasse desapontá-lo. Uma decepção abstrata, e não prática.
Não queria dar nomes a essas pessoas que participavam tão ativamente da sua angústia e alegria, agradava-o a idéia de que o cheiro era o existir, o componente perceptível da alma. Via no cheiro um poder classificatório maior do que qualquer nome. O nome era inteiramente cultural, o cheiro conciliava algo que já existe no nascimento e a posição de cada sujeito no mundo. Aquilo que se introduzia através das suas longas narinas expressava a falsidade de toda a ciência contemporânea fragmentada. Via, ouvia, sentia e refletia no cheiro o próprio ser social. Não o cheiro das unhas daquela mulher, nem a colônia que fazia brilhar a sua pele que se esforçava em não romper sob toda aquela pressão adiposa, algo mais profundo que o ligava a ela, algo que fazia com que um visse com os olhos do outro e permitia saber, objetivamente, o que devia ser feito, e era isso que ele queria, agir.
Antes de se entregar completamente àquele perfume que abalava toda aquela sua frágil existência individual, percebeu que não sentia no homem de pernas finas aquilo que sentiu ao ver aquela mulher. Sentiu-se triste, talvez ele não mais existisse, ou poderia ter perdido a sua existência em alguma esquina daqueles cruzamentos inúteis que clamavam por palavras.
Tentou se aproximar, deveriam se salvar juntos, mas percebeu aqueles olhos medrosos, que se tornavam vermelhos por refletirem a camisa vermelha que se colocava cada vez mais perto, as pernas se apertaram, tão assustadas, que propiciaram o toque de duas coxas que até aquele momento se estranhavam. Voltou ao seu lugar depois de quase cair sobre aquele corredor que registrava passos.
Via a verdade naquele cheiro, presa por portas medonhas e construída por homens perversos ou apenas novos marceneiros. Todas elas deviam ser destruídas e não abertas, o aparecimento da verdade tinha de ser total e não parcial, aquele cheiro havia de construir um novo céu.
Desceu, as pessoas não o viam muito bem, a sua imagem era estranha, pois naqueles os olhos não se encontravam no nariz, mas se sentiam ao mesmo tempo bem com a sua presença, olhavam, todas, diretamente para o céu.
Algumas semanas depois daquele ônibus, foi visto sentado na areia da praia, mastigando sons e vomitando reflexões. Estava abatido e angustiado como no dia em que era levado por aquele elefante encaixotado a lugares que ainda não conhecia, mas que já pareciam tão distantes. Um olhar mais atento poderia ter visto, no seu bolso, um volume mais alongado e saliente que correspondia a uma caneta, e um volume retangular e achatado que poderia ser tanto um cartão como um papel dobrado. Junto com um invólucro de bala que tirava do bolso em direção ao lixo, estava aquele segundo volume, retangular e achatado. Asfixiado que estava, se desdobrou, e assim como falamos obrigado uns aos outros, dizia o papel ao vento:

“O outro
Contra quem lutamos
É a nossa essência.

O totem tartaruga
Contra o qual
Nosso corpo reage
Diante de qualquer lento-ato.

Não devemos nos perguntar
Se a nossa luta
Contra esses diabólicos reflexos mecânicos
Não tomou a forma
Daquilo contra o qual cravamos os dentes?

A tartaruga tem em si
Um segredo oriental
Um poder de grande magnitude
Que nos mostrará novas possibilidades?”

Sentia-se desapontado, sua mente se encontrava, novamente, recheada de interrogações que deviam pesar toneladas, pois com elas não conseguia se movimentar. Seus pés e suas mãos formigavam e o mundo apodrecia ao seu redor.

Quando nos demos conta dos nossos olhos de aranha, acabamos por multiplicar a própria realidade e presenteamos cada parte com asas.

o abandono do conceito de totalidade
da "ciência" contemporânea
distorcido em hegel
ajustado em Marx
esquecido pelos profissionais ideológicos contemporâneos

*Texto escrito pelo meu amigo Lucas Trindade aluno de Ciências Socias da UFPB.

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